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Roda de discussão literária analisa obra de Carolina Maria de Jesus

Miriam Gimenes

PRIMEIRO ENCONTRO DA RODA DE DISCUSSÃO LITERÁRIA ANALISA  OBRA DE CAROLINA MARIA DE JESUS

A biblioteca do Colégio Xingu, desde o ano passado, ganhou como patronesse a escritora Carolina Maria de Jesus. Não à toa, a primeira obra escolhida para a roda de discussão literária, que contou com a participação de responsáveis e colaboradores da escola, foi Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado pela primeira vez em 1960 e que ajudou a moradora de uma favela de São Paulo a realizar o sonho de ser uma escritora reconhecida. O encontro virtual foi mediado pela escritora Heloísa Pires Lima, graduada em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e mestre e doutora em Antropologia Social com foco nas representações culturais, também pela USP.

A escritora e antropóloga tratou de iniciar a conversa expondo a importância de Carolina Maria de Jesus para a literatura brasileira, detalhando em qual contexto o público a conheceu. Segundo Heloísa, a autora ‘nasceu’ em um momento em que o Brasil assistia à inauguração de Brasília, já que estava sob o comando de Juscelino Kubitschek - que tinha o slogan ‘50 anos em 5’. No exterior, havia um movimento geral antiguerra do Vietnã, principalmente nos Estados Unidos, que estava também no processo de luta pelos direitos civis contra a segregação racial. Já no continente africano, existiam conflitos pela independência. 

“Era um mundo em ebulição em que ela nasce como escritora. Este livro faz um sucesso estrondoso do ponto de vista comercial e também é usado como estratégia da sociedade brasileira, para se voltar para si mesma. Ele representava uma narrativa em primeira pessoa, adaptada por um viés feminino. O lugar de fala é a história da Carolina, mas, ao mesmo tempo, de tantas outras mulheres daquele momento. Esse lugar de fala realmente coloca para fora a voz dos emudecidos até então na produção literária e o grosso do material dela sai como diário, que não são narrativas sem artifício”, explica Heloisa.

O fato é que um pouco antes da publicação oficial, em 1958, Carolina escrevia apenas para si, em forma de diário, em cadernos que achava no lixo. Relatava as desavenças da vizinhança onde vivia, os episódios difíceis do cotidiano de uma favela - em que muitas vezes não há o que comer - e a dificuldade de ser uma mulher negra e mãe solo. Isso até a visita do jornalista Audálio Dantas ao local, que buscava traçar em reportagem o cotidiano da favela à beira do rio Tietê, mas que se surpreendeu com uma mulher que ‘ameaçava’ colocar a história de todos ali presentes em seu livro. Ele pediu para ver suas anotações e, ao folhear os cerca de 20 cadernos, notou que ela tinha muito a dizer, tanto que viabilizou a realização de seu sonho. 

“É interessante porque todo mundo fala que o jornalista a descobriu, mas o nosso ponto de vista diz que Carolina se revelou para o mundo. Porque quando ele chega na favela, ela está conversando com os vizinhos e diz que vai colocar todos dentro do livro. Essa fala é muito forte. Alguém que no lixo encontra um caderno, o salva e começa a escrever sobre o cotidiano em volta dela, o mundo dela”, ressalta Heloísa, acrescentando que a escritora jogou ali, literalmente, sua obra ao vento. Por isso, acrescenta, é importante conhecer não só a biografia dela, mas principalmente sua escrita, que tem mensagens atemporais e significativas. Tanto que o este primeiro livro começou com 10 mil cópias vendidas à época e hoje já ultrapassa mais de 100 mil exemplares distribuídos em 40 países. 

Os participantes do encontro virtual, que leram a obra para discussão, pontuaram todas essas considerações de Heloísa e também deram suas impressões. Alguns se identificaram com a história dela, de origem pobre e lutando para sobreviver, e também destacaram a reflexão que o texto de Carolina causa, inclusive do ponto de vista da desigualdade social e racismo. O livro também foi comparado a um mar de pensamentos, que cada vez que se ‘mergulha’ encontra um aprendizado diferente - sim, teve quem já havia lido no passado e repassou a publicação para o encontro promovido pelo colégio. Todos, em uníssono, falaram sobre a importância deste tipo de ação, de analisar uma obra literária de tamanha importância e discutir suas diretrizes e reflexões, principalmente no ambiente familiar. 

E para quem teve a oportunidade de desfrutar da leitura, é impossível não conectar esse texto com o que vivemos hoje, inclusive quando o índice de pessoas em situação de miséria no país só aumenta. “A atualidade do texto de Carolina está no centro da mesa, desperta gatilhos. E é difícil para as pessoas lidarem com eles, temos de ter sensibilidade para entender isso. Outra coisa muito interessante sobre as conversas dela é sobre seu entendimento de escrita como um ato político”, diz Heloísa. É preciso, ressalta a especialista, visitar sempre a obra de Carolina Maria de Jesus, refletir sobre suas considerações e reverbera-las, assim como a autora fez, quando jogou ao vento seu talento literário. Ainda bem que seus ‘gritos’ continuam ecoando em forma de texto e aprendizado.