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Por que trocamos o patrono da biblioteca?

Por: Miriam Gimenes

“Prô, se já sabemos que Monteiro Lobato tinha posicionamentos racistas, por que a biblioteca leva o nome dele?”. Foi ao ouvir esse questionamento, no ano passado, de uma aluna de 13 anos, que a coordenadora de Língua Portuguesa e professora de biblioteca da escola, Mileny Beccaria Vasconcellos, ligou o sinal de alerta. Era uma época ainda de aulas remotas e o tema do dia era a discussão de um projeto sobre racismo, liderado pela professora de inglês, Tânia. O assunto foi, então, levado para a gestão do colégio, que concordou com a aluna e decidiu mudar o patrono do espaço literário, de forma democrática. E, depois da eleição que contou com votos de alunos e colaboradores da escola, a eleita foi Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora negra, que retratou de forma singular o cotidiano de quem mora na periferia do país. 

A autora concorreu com outras duas escritoras, que também tiveram, ao longo da história, pouco reconhecimento e sofreram apagamento em razão do racismo estrutural ainda existente no Brasil: estavam no páreo Conceição Evaristo, que já ganhou o Prêmio Jabuti em 2015 - referência de reconhecimento literário - e Maria Firmina dos Reis (1822-1917), considerada a primeira romancista negra brasileira.  

Em live realizada há pouco pelo colégio, o tema foi o racismo contido na obra de Monteiro Lobato. Participaram a vice-diretora e coordenadora da Educação Infantil e primeiro ano, Fernanda Sanches, e a escritora Heloisa Pires Lima, graduada em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e mestre e doutora em Antropologia Social com foco nas representações culturais, também pela USP. Ambas contextualizaram a discussão da troca de nome e exaltaram a importância da escolha de três expoentes literários brasileiros para como opção de nova patronesse. 

Entre os pontos expostos por Heloísa, que lembrou que Lobato vinha de um outro contexto social - ele nasceu em 1882 e a abolição da escravatura foi em 1888 -, mostrou, com exemplos e ilustrações, a maneira como Tia Nastácia era tratada nas histórias, de forma debochada, sempre com um aspecto que se assemelhava a um animal, quase todas as vezes de maneira desqualificada. 

“Essa discussão não invalida a obra de Monteiro Lobato. Qualquer obra pode ser estudada ao infinito e é importante que as crianças saibam e discutam, por exemplo, o fato do Pedrinho chamar a Nastácia de macaca em um dos livros. Hoje em dia esse debate está bem colocado na sociedade brasileira, com muito atraso. Mas a gente também tem de chamar atenção, destacar várias iniciativas que fizeram o debate andar. Uma delas é das escolas antirracistas, que é não continuar perpetuando uma série de preconceitos, racismos, estereotipias, para a próxima geração”, ressalta Heloísa. “É importante olhar para o erro e refletir sobre ele, porque temos crianças negras no país e devemos dar atenção no que circula, entendendo essas crianças também como leitores”, completou.

  • Para acessar a live As manifestações de racismo na obra de Monteiro Lobato, com Heloísa Pires Lima, clique aqui. 

Mileny, que não esteve na live mas participou de todo o processo da eleição da patronesse, explica na entrevista a seguir a maneira como se formulou a iniciativa. Confira:

Como surgiu a ideia de mudar o nome da biblioteca do Xingu? Por que não mais Monteiro Lobato?

Há aproximadamente dois anos começamos a questionar algumas práticas por conta da inserção do Plano Institucional Antirracista e acabamos por entrar em contato com as polêmicas que rondavam o nome de Monteiro Lobato, mas, foi durante uma aula no 8º ano, que a ideia apareceu. Ainda em 2020, no contexto remoto, fui convidada pela professora de Inglês, Tânia, para participar de uma aula; ela conduzia um projeto sobre racismo e pediu que eu falasse com os alunos sobre alguns livros. Foi aí que a questão surgiu: uma garota de 13 anos me questionou: “Prô, se já sabemos que Monteiro Lobato tinha posicionamentos racistas, por que a biblioteca leva o nome dele?”. Não preciso nem dizer o que aconteceu na minha cabeça, não é? É vergonhoso, mas nunca havíamos feito aquela relação até o momento em que a menina comentou. O assunto foi levado à gestão do colégio e passamos um bom tempo estudando e pensando sobre como aconteceria a troca do patrono. A ideia mais sensata e democrática foi organizarmos uma eleição. Foi tudo feito com muito cuidado e bastante calma, não queríamos que parecesse algo midiático, tanto colaboradores, professores e alunos precisavam compreender o porquê da decisão.

Como foi feita a escolha das escritoras que concorreram para nomear novamente a biblioteca?

Enquanto escola, tínhamos um objetivo em mente: gostaríamos de homenagear alguém que tivesse – infelizmente – sua história pouco reconhecida ou até mesmo apagada por conta do racismo estrutural que assola nosso país. Discutimos o assunto em gestão e ficou definido que colocaríamos autoras negras e brasileiras para concorrer à eleição, afinal, tivemos apenas autores brancos escolhidos em outras práticas por muito tempo, por tempo demais. Dentre tantas autoras negras incríveis que existem em nossa literatura, decidimos escolher Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, mulheres com obras literárias extremamente relevantes e com histórias de vida marcantes. Feito isso, passamos para o momento de explicar nossa intenção para os colaboradores e alunos.

Como foi a receptividade dos alunos?

Tanto com as crianças menores quanto com os adolescentes sentimos que a receptividade, no geral, foi ótima. Alguns – poucos – questionaram: “Prô, mas não era o contexto da época?”, “Como vocês têm certeza que Lobato tinha posições racistas?”. Não era possível ler com alunos menores as cartas escritas pelo autor que expunham seus pensamentos, tampouco explicar algumas de suas posições, já com os mais velhos lemos alguns trechos para fundamentar a decisão da escola. A maioria das crianças e adolescentes falou algo como: “Nossa, eu concordo! Não acredito que ele pensava que as pessoas não deveriam ter os mesmos direitos!”, “Seria hipócrita, não é, prô, ter o nome da biblioteca homenageando alguém que pensava assim?”, “Eu não penso dessa forma, nem minha família! Devemos mudar mesmo!”. Consideramos reforçar e explicar para todos que a intenção não era banir a obra do autor da biblioteca, mas, sim, encontrar alguém que tivesse ideais parecidos com os da escola para ser homenageado. Reforçamos também que o racismo não é negociável. Deixamos claro que homenagear alguém e ler a obra são coisas diferentes, sendo possível – para aqueles que quiserem – continuar lendo a obra lobatiana e questioná-la assim como fazemos com tantos outros livros. Tivemos uma emocionante lição com tudo isso: as crianças são mais acessíveis às mudanças e à desconstrução do que muitos de nós, adultos. Foram dias lindos e históricos para a comunidade Xingu!

Por que acha que a Carolina ganhou? Qual o legado dela para a literatura brasileira?

Embora a maioria dos alunos e até mesmo dos adultos que participaram da votação ainda não a conhecessem, acredito que a história de vida da autora sensibilizou a todos. O legado de Carolina Maria de Jesus é inigualável para nossa literatura, mesmo tendo um reconhecimento mais tardio que de outros autores. A autora usava a escrita para dar voz a muitos que não foram nem são ouvidos, ela escrevia a rotina de grande parte do povo brasileiro. Quando penso em sua obra questiono o quanto precisamos reconsiderar o cânone da literatura nacional. É necessário rever e repensar.

De que maneira essa pluralidade e diversidade está impressa nas prateleiras da biblioteca?

Não preciso nem dizer que, em meio a dez mil livros que compõem nosso acervo, a maioria é de autoria branca. Porém, desde o ano passado, o Colégio tem feito aquisições mensais de obras de autores negros, bem como de livros com personagens negros, já que, para as crianças, as ilustrações são fundamentais para que construam novas e plurais representações em seu repertório. Também estão sendo comprados livros de autoria negra para leitores adultos, de forma a contemplar os colaboradores e professores como leitores. Posso dizer que o caminho é longo, mas, enquanto escola, não voltaremos atrás, nossa responsabilidade com a futura sociedade é muito grande para retrocedermos.